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O TOQUE LUBITSCH EM TECHNICOLOR

Cor e narrativa em Heaven Can Wait

por Renan Távora Soares

21.05.2025, 18h30

Ernst Lubitsch é um cineasta de origem alemã que teve muito sucesso com filmes mudos e extremamente populares em seu país de origem. Lubitsch era uma anomalia como diretor ativo que também atuou como chefe de produção em um grande estúdio, como fez brevemente na Paramount . Embora a maior parte de sua carreira tenha ocorrido durante a era do cinema mudo, quando dirigiu mais de 40 filmes mudos alemães antes de se mudar para os Estados Unidos, a influência de seus filmes sonoros excede em muito a quantidade deles. (BARSON, 2025). Por ser bem-sucedido até nos Estados Unidos, Lubitsch despertou o interesse de Hollywood, que através da United Artists o contratou para fazer filmes na América. Depois de uma passagem decepcionante pelo estúdio ele acerta um contrato com bastante liberdade com a Warner, que à época tinha feito mais de um milhão de dólares em bilheteria com o filme My Four Years In Germany (EUA, 1918). 

Em 1943, Lubitsch faz seu primeiro e único filme a cores, Heaven Can Wait (O Diabo disse Não, EUA, 1943), o último com o seu inconfundível “toque”. “[...] uma comédia elegante e irônica, um misto de agridoce e sofisticação e sagacidade.”(ANDRADE, 2023). O chamado “Lubitsch touch” não se resume a uma assinatura cômica; ele inclui um olhar sofisticado sobre relações humanas, economia narrativa e um domínio absoluto sobre o que é sugerido e não dito. Em Heaven Can Wait, essa sutileza encontra na cor uma nova camada de expressão.

O filme começa com a representação visual do inferno. Ele tem grandes colunas vermelhas, é composto por altas paredes preenchidas por largos livros e uma única mesa ao centro, que se assemelha a uma cabine de atendimento de uma repartição pública. O primeiro plano do filme é um establishing shot, um plano que contextualiza o espaço. O Sr. Van Cleave entra por uma porta no alto de uma escada e atravessa as grossas pilastras vermelhas indo de encontro a Vossa Excelência, o Diabo. A rima visual que se cria é que nosso protagonista está descendo, como se tivesse indo de fato para o inferno e além desta clara referência à mitologia cristã do acima (above) e abaixo, existem sombras características neste primeiro plano que trazem destaque para certos aspectos da imagem. 

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O intraduzível “Lubitsch touch” é mais do que um estilo: é a soma que associa a personalidade do artista a uma inimitável técnica. Além de assombrosa maestria através da qual o gênero da comédia americana encontrou suas regras, Lubitsch inscreve no ponto de vista cinematográfico uma distância soberana entre o olhar e o riso, entre a essência cômica de uma situação e o resumo crítico que a afasta da convenção.    (VEILLON, 1992, p.153)

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Figura 1 - Frame do filme Heaven Can Wait (1943) de Ernst Lubitsch

É interessante então pensar em como a cor afeta de fato como vemos este primeiro plano e por consequência o resto do filme - influenciando inclusive sua própria narrativa - e como o espectador a verá a partir deste momento, definindo o tom da narrativa. "Somos capazes de ouvir um único tom. Mas quase nunca vemos uma única cor desconectada e  não relacionada a outras cores. As cores se apresentam em fluxo contínuo, [...] e condições em transformação." (ALBERS, 1963)

Depois dessa primeira cena de apresentação do universo do filme, ele começa a se desenvolver a partir de flashbacks. O Sr. Van Cleave decide contar a história de sua vida a partir das mulheres que passaram por ela. A partir daí que se nota uma das características mais marcantes do processo Technicolor. Essa técnica se caracterizava por ser um sistema cinematográfico a cores que utilizava três tiras de filme preto e branco para capturar as cores primárias (vermelho, verde e azul). Essas tiras eram então reveladas e tingidas, e depois laminadas para criar a imagem final a cores (HECKMANN, 2025). Pelas definições padrões do próprio processo de colorização da película, as cores vistas em tela eram extremamente vibrantes. E como um cineasta bastante sofisticado como era, Lubitsch usa isso, a partir não só da direção de fotografia mas também da direção de arte, a seu favor a fim de setorizar partes da vida do protagonista em cores. O Technicolor, à época, representava um marco tecnológico, utilizado sobretudo em grandes produções de Hollywood. Sua adoção por Lubitsch revela não apenas uma atualização técnica, mas a intenção de explorar as potencialidades expressivas da cor dentro de uma linguagem cinematográfica já consolidada.

Logo nas primeiras cenas, torna-se claro como o diretor empregará as cores para construir sentidos narrativos e emocionais. O azul representa o aconchego - é a cor da segurança, do lar, do espaço estável onde a vida do protagonista transcorre sem sobressaltos. Está associada às mulheres de sua família, figuras que oferecem refúgio e proteção, a quem ele sempre pode recorrer. Em contraste, o vermelho surge como a cor da paixão e do descontrole, sinalizando a ruptura dessa estabilidade. É com ela que, pela primeira vez, uma mulher irrompe no universo do Sr. Van Cleave, abalando sua rotina previsível. 

Teorias sobre a percepção das cores na fotografia ajudam a iluminar esse uso simbólico; e com o processo fotográfico adotado neste filme, tais teorias não apenas se confirmam, como ganham ainda mais força. Segundo alguns autores, a fotografia colorida se desvia ainda mais da visão humana do que a fotografia em preto e branco, principalmente no Technicolor. O azul e vermelho são exagerados a tal ponto que o seu brilho é intensificado. (ALBERS, 1963).

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Figuras 2 e 3 - Frames do filme Heaven Can Wait (1943) de Ernst Lubitsch

Na Figura 2, vemos a interação direta entre os dois mundos do Sr. Van Cleave. Em azul, está sua mãe, a figura de proteção, aquela a quem o ainda jovem protagonista recorre sempre que enfrenta um problema. Ela representa o amor incondicional, sem julgamentos: o espaço seguro. Ao seu lado, temos Mademoiselle, a mulher que o impulsiona a descobrir novos caminhos para sua vida. Ela é o vermelho, cor da paixão, do fogo e do movimento. 

Na Figura 3, acompanhamos o início da caótica relação do Sr. Van Cleave, segundo ele mesmo, com as mulheres. Aqui aparecem as famosas portas de Lubitsch, além do uso intencional da paleta cromática. O jovem se veste com tons quase neutros, mas está inserido em um ambiente completamente azul. Em contraste, o vermelho vibrante das roupas da jovem francesa salta aos olhos, é quase hipnótico. É nesse momento, e em uma sequência logo após esse plano, que ele percebe que não precisava se casar com uma garota só porque a beijou em uma cabine policial. Afinal, já era 1887. E, mais ainda, que além das formas mais modernas de relacionamento, poderia experimentar quantas garotas quisesse antes de decidir com qual delas gostaria de se casar. Portanto, se torna claro como a cor começa a guiar quais conclusões iremos tirar das intenções das personagens, mas também como o nosso protagonista irá agir a partir daqui. A partir da teoria de cores, o espectador entende a ânsia do Sr. Van Cleave de se entregar ao diabo e ir viver a eternidade no vermelho do fogo do inferno.   

No filme, a cor roxa é claramente representada por Marta Stable, o amor da vida de Henry Van Cleave, a pessoa com quem o homem - ao chegar no inferno - gostaria de se encontrar no “acima”. Há um grupo significativo de cores na natureza que está totalmente ausente no espectro visível: os tons de roxo. Essas cores resultam da combinação de raios vermelhos com violetas ou azuis, gerando tonalidades particularmente belas. Para uma visualização mais precisa desses matizes, é possível recorrer novamente ao uso de instrumentos específicos (STEINHAUS, 1966).

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Figura 4 - Frame do filme Heaven Can Wait (1943) de Ernst Lubitsch

Para o Sr. Van Cleave, Martha representa tudo em seu mundo. É com ela que ele deseja estar, independentemente de qualquer coisa — e de fato qualquer coisa, já que está disposto a roubar a futura esposa do próprio primo. Albert, primo de Henry, estava prestes a se casar com Martha, mas o Sr. Van Cleave foge com a donzela durante a apresentação formal do casal à família inteira, em nome de seu próprio "felizes para sempre".

O interessante, ao analisar a relação entre os dois, é perceber que não há apenas a calmaria que Martha traz para Henry, mas também pequenos momentos de ruptura que viram seu mundo de cabeça para baixo. Ele parece ter sido preparado, ao longo da vida, para lidar com mulheres associadas às cores azul e vermelha, mas não com alguém que simbolizasse a fusão das duas.

Em Heaven Can Wait, a cor não é mero adorno visual, mas um componente narrativo articulado com precisão à dramaturgia e ao desenvolvimento das personagens. Lubitsch, em seu único filme colorido, demonstra domínio técnico ao incorporar o Technicolor com refinamento estético e simbólico, reforçando seu estilo autoral mesmo diante de uma nova tecnologia. A articulação entre azul, vermelho e roxo revela uma paleta emocional que guia o espectador pelas nuances do protagonista, reafirmando que o "toque Lubitsch" permanece intacto mesmo sob as ilusões cromáticas do cinema em cores. "Da mesma forma como as sensações táteis podem nos enganar, as ilusões ópticas também o fazem. Elas nos levam a 'ver' e 'perceber' cores diferentes daquelas que estão fisicamente diante de nós.” (STEINHAUS, 1966).

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Ana Lúcia. O Diabo Disse Não – Um filme de época atemporal. In: BRITO, Fernando (org.). Clássicos de Hollywood – Obras-primas essenciais. Livreto Versátil Home Vídeo, 2023. p. 26-32.

STEINHAUS, Alexander. The nine colors of the rainbow. Traduzido do russo para o inglês por David Sobolfv. União Soviética: MIR Publishers, 1966.

 

ALBERS, Josef. Interaction of color. Estados Unidos: Yale University Press, 1963.

 

VEILLON, Olivier-René. O Cinema Americano dos anos trinta. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Ernst Lubitsch, p. 153-168.

 

HECKMANN, Chris (2025). O que é Technicolor? Definição e História explicadas. Disponível em <https://www-studiobinder-com.translate.goog/blog/what-is-Technicolor-definition/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=sge>. Acesso em 9 mai. 2025. 


BARSON, M. (24 de janeiro de 2025). Ernst Lubitsch. Enciclopédia Britânica. https://www.britannica.com/biography/Ernst-Lubitsch

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Heaven Can Wait

1943 Comédia/Drama

DIREÇÃO: Ernst Lubistch

ROTEIRO: Samson Raphaelson

FOTOGRAFIA: Edward Cronjanger

ELENCO: Don Ameche, Gene Tierney e Charles Coburn

© 2025 Gangorra Filmes. Todos os direitos reservados.

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